Conheça as ideias do filósofo alemão Adorno, crítico da indústria cultural - Márcio Seligmann-Silva
Volume contextualiza a produção e a formação crítica de Adorno
da Folha Online
Influente filósofo do século 20, o alemão Theodor Adorno (1903-69) lutava contra o que chamava de "indústria cultural", termo tão usado atualmente. Seus pensamentos podem ser melhor compreendidos com o volume "Adorno", da coleção "Folha Explica". Leia capítulo do livro a seguir.
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Além da indústria cultural, o livro (cujo primeiro capítulo pode ser lido abaixo) de Márcio Seligmann-Silva discute o fracasso do pensamento filosófico e político europeu e o papel das obras de arte para o pensamento utópico atual. O volume contextualiza ainda a formação e produção crítica de Adorno, cronologia e bibliografia do filósofo e escrita sobre ele.
- Leia resenha "Ensaio contextualiza apocalipse do filósofo alemão Theodor Adorno", de José Geraldo Couto, publicada à época do lançamento do livro.
Seguindo a proposta da série "Folha Explica", Seligmann-Silva ajuda o leitor a começar o estudo da obra do pensador, além de atualizar os "iniciados" em Adorno.
Doutor pela Universidade Livre de Berlim, Seligmann-Silva é professor de teoria literária e literatura comparada da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de "Leituras de Walter Benjamin".
Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.
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Não é fácil a tarefa de expor o trabalho, vasto e complexo, de um autor como Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno. Não apenas por se tratar de uma obra não-passível de "resumir" em algumas páginas. Na verdade, a utopia que estava por trás do projeto da Encyclopédie, no século 18 --e que até hoje sustenta nossas tentativas enciclopédicas--, previa a possibilidade de arquivar todo o conhecimento da humanidade em grossos e pesados volumes, organizados em ordem temática ou alfabética.1 Adorno e muitos de seus companheiros de caminhada intelectual, como Max Horkheimer e Walter Benjamin, descartavam justamente esse modelo de saber enciclopédico.
Em primeiro lugar, porque para Adorno não existiria a possibilidade de separar, sem mais, o conteúdo da forma de uma obra. Toda tentativa de redução representaria uma traição do original - e isso não significa de modo algum que ele reduzisse a obra a uma intencionalidade primária, pura, que seu autor teria passado sem mediação para o texto.2 Nesse ponto, como veremos, Adorno seguia certa tradição de pensamento alemã, que via na forma, na apresentação (Darstellung), um momento indissociável do trabalho do conceito e da reflexão. Portanto, estaríamos correndo o risco de puxar o tapete sob nossos próprios pés ao fazer deste livro um pretenso "resumo" da obra de Adorno.
Mas a questão da "impossibilidade", sob o signo da qual nos situamos aqui, não se limita ao âmbito da crítica do conhecimento (e dos modos de sua apresentação). Adorno também foi um dos mais vigorosos críticos daquilo que ele batizou de "indústria cultural". Nesta (como ele e Max Horkheimer escreveram na Dialética do Esclarecimento, em meados dos anos 40), o saber é reduzido à mercadoria; o público, ao público-alvo consumidor; e a cultura se transforma em "pseudocultura": verniz brilhante de algo oco.
A bem da verdade, as duas questões estão intimamente ligadas. Do ponto de vista do positivismo, ou seja, de uma concepção que acredita na possibilidade de dominar e representar o mundo por meio de métodos científicos, sem deixar "restos", a apresentação é epifenomênica (desprezível) enquanto momento do processo de conhecimento. O positivismo toma a linguagem como meio neutro capaz de representar seu objeto de modo integral. Existe justamente uma cumplicidade entre essa concepção da linguagem e aquela que predomina na indústria cultural. Aqui também a linguagem é tratada como instrumento: a saber, como meio de glorificar o presente. Tanto na indústria cultural como no positivismo, não há lugar para a crítica.3
A concepção de conhecimento que está na base da enciclopédia tende também a esse acordo incondicional com a realidade. Ela aceita o plano de submeter integralmente seu objeto ao discurso do sujeito de investigação e, por outro lado, nega-se a assumir o elemento discursivo desse saber. A conseqüência de tal visão é que o conhecimento se torna comemoração repetitiva do que existe: publicidade do sempre igual. Mais: a suposta neutralidade científica estende-se por sua propalada indiferença com relação à esfera política.
A crítica do positivismo revela esse modelo do saber científico como propaganda do status quo. Para Adorno, tal concepção de conhecimento (amplamente dominante no Ocidente) apenas na aparência se opõe ao que acontece no totalitarismo. Nos anos 60, ele formulou a questão com as seguintes palavras:
Se um dia o espírito for levado a passeio, como muitos certamente desejariam, se for adaptado ao gosto do freguês que domina o negócio, elegendo a inferioridade deste como pretexto para sua própria ideologia, então se terá acabado com o espírito tão radicalmente como sob o porrete fascista.4
Assim como no universo totalitário e unidimensional do fascismo todos, tendencialmente, constituem o Estado-Leviatã, assim também não existe, para o positivismo, tensão entre o sujeito de conhecimento e o objeto estudado. Já para Adorno, ocorre o contrário. Contrariando o ideal positivista que prega aquela relação mecânica e abstrata entre sujeito e objeto, ele afirma que "nada pode ser extraído pela interpretação que, ao mesmo tempo, não seja também introduzido pela interpretação".5 O sujeito é parte integrante do processo de conhecimento --e este, por sua vez, não se reduz à simples análise e decomposição em partes do real, mas, antes, é encarado como interpretação.
Para Adorno, filosofia é acima de tudo "comentário e crítica", como ele escreveu em 1950 sobre seu amigo (e, de certo modo, mentor intelectual) Walter Benjamin.6 Ela só pode existir no espaço da tradição e de sua crítica calcada politicamente no presente. Nas obras de arte --musicais, literárias e plásticas--, Adorno aplicaria do modo mais original essas premissas. Para ele, a cultura não podia ser pensada separadamente da crítica; a esta cabe o papel de revelar a não-verdade da primeira.7 Assim, na Teoria Estética (sua última obra), Adorno apresentaria a estética como "a filosofia em si", e não como um campo dela, ou como a aplicação de teoremas ao universo artístico-cultural.
Numa de suas formulações lapidares, no mesmo ensaio sobre Benjamin, ele afirmou também que "sua ensaística consiste na abordagem de textos profanos como se fossem sagrados" e definiu o método do amigo como "uma desmedida entrega ao objeto": "o pensamento adere e se aferra na coisa, como se quisesse transformar-se num tatear, num cheirar, num saborear".8 O modo pelo qual surge a apresentação na obra de Benjamin também foi valorizado por Adorno, que elogiou seu princípio imagético: Benjamin construía imagens para captar, reter e criticar instantâneos da realidade, que ele surpreendia em momentos estratégicos.
Tanto a entrega ao objeto quanto esse procedimento imagético (o trabalho de construção do saber por meio da elaboração de constelações e da exploração de campos de força) marcam também a obra adorniana. Para ele, interessava não dissolver as tensões existentes entre as diversas camadas de sentido da realidade, mas antes colocá-las em perspectiva, para explicitar e explorar essas mesmas tensões. Afinal, como ele nota também com relação a Benjamin, a interpretação não pode visar a um fim pontual, pois, assim como para o Nietzsche tardio, "a verdade não é idêntica ao universal atemporal", e "tão-somente o histórico ministra a configuração do absoluto".9 A verdade tem um núcleo temporal.
A construção e a leitura das constelações e dos campos de força devem tensionar as diversas estrelas (a saber, os conceitos e suas configurações), a partir da força de gravidade que emana do presente. Adorno, ao contrário de Platão (para quem o mundo das Idéias é imutável), entroniza o efêmero e o transitório. Contra Descartes e as regras expostas nos Discours de la Méthode, o ideal não é para ele o saber "claro e distinto", mas sim a fidelidade à dúvida e à resistência dos objetos ao saber. Contra os grandes sistemas da filosofia e o desejo de construir dedutivamente um todo sem lacunas, ele prega um anti-sistema, calcado no trabalho de imagens com suas rupturas e descontinuidades: como num mosaico, a totalidade deve brilhar, num lampejo, apenas com base na visão dos fragmentos. Essa é a única fidelidade possível ao "todo".
A partir dessas idéias, tentemos agora tirar algumas conclusões sobre a tarefa que coube a este livro de apresentação à obra de Adorno. O leitor perceberá que não se quis fazer aqui, de modo algum, uma apresentação (desde sempre impossível e, portanto, fadada ao fracasso) do "todo" da "obra" de Adorno. Este trabalho foi elaborado com base em duas perspectivas: apresentar a atualidade (e, em alguns momentos, os limites) de algumas das "constelações" de grande importância no trabalho de Adorno; e, assim, indicar pistas que podem ajudar os leitores interessados a iniciar sua própria caminhada pela obra desse pensador. Nada pode substituir a leitura dos textos dele (idealmente, em alemão - dadas as complexidades arroladas).
Uma apresentação entrecortada pelo comentário justifica-se inteiramente. Afinal de contas, estaríamos caindo nas armadilhas do positivismo ao acreditar na autonomia total da obra adorniana: ela, como qualquer outra, só existe a partir de suas leituras. O comentário é não só possível, como essencial, à obra e deve ser visto como parte dela. Deve-se notar que os limites de espaço desta coleção impõem um regime rigoroso de contenção da escrita - teremos de abrir mão de penetrar em várias portas da obra de Adorno. Como ele próprio ensinou nas Minima Moralia: "Faz parte da técnica de escrever ser capaz de renunciar até mesmo a pensamentos fecundos, se a construção o exigir".10
A obra de Adorno não pode ser desvinculada de sua recepção --e, nesse sentido, é importante recordar como outros comentadores, já desde o final dos anos 60 e início dos anos 70, reportam-se à relação existente entre o nascimento mais intenso do interesse por essa obra e os movimentos estudantis da década de 60. O próprio Adorno notou as semelhanças entre a rebeldia de então e a que marcara os anos 20, em seus tempos de estudante. Seus escritos serviram em parte para alimentar a rebeldia e a crítica radical da sociedade dos anos 60. Mesmo que ele próprio, como veremos, tenha estado --tragicamente-- no alvo daquela crítica, não podemos esquecer esse elemento de libertação e insatisfação profunda com o mundo que se apresenta como traço definidor de sua obra.
Uma das "estrelas" do campo de força que hoje constitui a própria obra de Adorno são suas traduções. Toda tradução é uma interpretação e atualização do "original" em determinado "aqui e agora". Neste livro, procuramos utilizar as traduções brasileiras existentes. Eventualmente, fizeram-se intervenções nelas, ou traduções a partir dos originais, participando assim da cadeia de traduções e comentários da obra de
Adorno. De resto, todo este trabalho pode ser visto como uma tentativa de "traduzir" alguns momentos de tal obra.
A leitura e a discussão sérias dos trabalhos de Adorno merecem espaço muito maior do que têm recebido até agora entre nós. O pensamento de Adorno faz contribuições enormes à filosofia, à sociologia, à crítica das artes, à psicologia, à educação e a todo o amplo espectro das ciências humanas. Sua obra é daquele tipo raro que, com o passar dos anos, torna-se cada vez mais atual.
1 O termo "enciclopédia" vem do grego egkuklios paideia e significa "estudo que abarca todo o ciclo do saber". No século 18 foi publicada na França, no contexto do movimento conhecido como iluminismo, uma enciclopédia monumental, sob a direção de Diderot e D'Alambert, a qual visava a apresentar todo o saber acumulado até então.
2 Num de seus trabalhos mais aclamados, "O Ensaio Como Forma", Adorno escreveu: "Quem interpreta, ao invés de simplesmente aceitar e classificar, é rotulado como aquele que, impotente, com mal orientada inteligência, entrega-se a finuras, implicando onde nada há para explicar". Aquele que sucumbe à pressão de simplesmente pensar "o que já se encontrava pensado", por outro lado, não fará nada mais que seguir a máxima segundo a qual "compreender não passa, então, de extrair aquilo que o autor teria desejado dizer ou, quando muito, as emoções psicológicas individuais que o fenômeno indicia" (trad. Flávio Kothe, em: Gabriel Cohn [org.], Theodor Adorno; São Paulo: Ática, 1986; p. 168-9; esse volume será doravante citado pelas iniciais TA).
3 Cf. Max Horkheimer, Eclipse da Razão, 1944 (trad. Sebastião Uchoa Leite; Rio de Janeiro: Labor, 1976; p. 97).
4 "Sobre a Pergunta: O Que É Ser Alemão?". Em: Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Trad. M.H. Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995; p. 133.
5 "O Ensaio Como Forma", p. 169.
6 "Caracterização de Walter Benjamin", em: TA, p. 193.
7 "Cultura verdadeira é aquela implicitamente crítica, e o espírito que se esquece disso vinga-se de si mesmo através dos críticos que ele próprio cria. Crítica é um elemento inalienável da cultura em si mesma contraditória, e, com toda a sua inveracidade, a crítica ainda é tão verdadeira quanto a cultura é inveraz" ("Crítica Cultural e Sociedade", em: TA, p. 79).
8 "Caracterização de Walter Benjamin", p. 193, 198s.
9 "Caracterização de Walter Benjamin", p. 190.
10 Minima Moralia: Reflexões a Partir da Vida Danificada. 2. ed. Trad. L.E. Bicca. São Paulo: Ática, 1993; p. 73.
"Adorno"
Autor: Márcio Seligmann-Silva
Editora: Publifolha
Páginas: 112
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